quarta-feira, 3 de maio de 2017

Dúvida 2008 - por André Maia

Pessoal!!!
Direto de PORTUGAL, nosso colaborador André Maia. Confira a matéria: 

Às 20:07 do dia 25 de abril abri o Dúvida 2008, o melhor vinho de Antônio Saramago. Não, ele não é irmão ou primo direto do afamado escritor. Ele é mais. É o enólogo que por décadas produziu o Periquita, aquele conhecido vinho de uma vasta brasileirada. E ao longo dos últimos anos de carreira (estamos falando de meio século de trabalho!), dedicou-se ao projeto familiar Antônio Saramago-Vinhos, que toca junto com dona Ausenda e os dois filhos do casal. Confira:

Dúvida 2008 - por André Maia


Ploc!, fez a rolha ao libertar-se de sua garrafa. Aprendi com Roger Scruton que esse som é uma saudação ao divino. Pois emitiu o som perfeito de rolha bem molhada e umedecida no lado de contato com o vinho, mas perfeita na extremidade oposta, a do selo. Libertava-se a rolha num grito, como se libertou Portugal de sua ditadura. E já veio no ar o cheiro da obra prima. Transcendia o prazer do perfume. Falava o prazer da certeza. A certeza de que um vinho tão querido estaria tão bom quanto merece ser. Não é uma questão de preço, mas de valores. 

Sofro de uma lealdade quase fetichista. Tenho um carinho devocional pelos produtores que conheço. É essa coisa de gostar de gente e logo ligo pessoas a rótulos e momentos e pronto... é vida. Pois foi justamente o que aconteceu em março de 2015, quando em um restaurante de Brasília realizaram um jantar harmonizado com os vinhos de Antônio Saramago na presença do próprio. Era imperdível! Fui. Ou melhor, fomos. Eu, Elias e Babi partilhamos juntos aquela noite soberba (para o meu deleite, sentei-me ao lado de Dona Ausenda Saramago e fiz cia a ela durante o jantar. Ótimas conversas e excelentes lições! “Cheguei aqui e os vinhos não estavam abertos! Precisam de 2 horas de decanter!”). 

O engraçado é que eu me lembro exatamente do momento em que bebi o primeiro gole do Dúvida 08 naquele jantar. Eu já estava impressionado desde o Reserva 09, e depois passamos pelo AS 09, mas o Dúvida era magnífico. Naquele primeiro gole havia algo inequívoco entre a complexidade e o sabor. Era um grande vinho. Pois por volta das oito horas e um quarto do dia 25 de abril de 2017 eu me reencontrava com aquela maravilha. 

O vinho decantou por duas horas e meia. Mas deixei na taça coisa de 120ml para ver no que ia dar. Imediatamente antes de grelhar o bife de alcatra que viria valsar com o Dúvida, provei um tanto da taça. Agora estava muito mais manso, apesar de manter um final de boca loooongo e saboroso. Que vinho! Grelhei o bife e, antes de tirar os legumes do forno, cortei dele um naco para saborear com o que ainda havia no cálice. Que casamento lindo! É para comemorar bodas de ouro, diamante, platina... os taninos pegavam a boca suplicando aquela carne. E tudo se satisfez lindamente. 

Ah, daí fui para o vinho no decanter. Já iam as tais duas horas e meia. De uns tempos pra cá tenho me acovardado em decantar demais um vinho e perdê-lo. Pois o que se perdeu foi qualquer traço de imperfeição. Só consegui lembrar-me do senhor Saramago dizendo-me, da última vez em que nos esbarramos (dezembro de 2016 na Estado D’alma, em Lisboa), que  o Dúvida foi provado por uns sujeitos importantes em Brasília e Salvador e que desde então não queriam mais saber de Pêra-Manca. Nunca provei o tal ícone da Cartuxa, mas faz sentido. O sabor e a presença do Dúvida não deixam margem para dúvida de quem gosta de vinhos com muita presença e pegada. 

Este texto já está longuíssimo e deixo para outra a razão do nome do vinho (tem algo a ver com o carvalho), mas o símbolo no rótulo é uma brincadeira com a interrogação. Se espelhada, vira um decanter (lições de Dona Ausenda...).

Hoje é o dia icônico do mês (Em março, o dia de gala foi o aniversário de meu avô e o Tinta Roriz 2003 do Crasto fez a cia). O jantar de hoje merecia uma boa sobremesa e confesso que passei o dia pensando nos pastéis de Tentúgal do Café Afonso. Mas a sobremesa deste vinho são suas memórias.  De um jantar em Brasília. De laranjeiras em Vila Nogueira de Azeitão. De uma feira em Lisboa. De um moscatel em um hotel (e da rima pobre de memórias ricas). 


Mas hora de escrever o que penso e o que sinto, pois o 25 de abril de 2017 começa a ser passado no calendário. Eu abro o computador na mesa da cozinha e lá fora tenho o prédio vizinho com meia dúzia de janelas acesas (exatamente. Eu contei). Para quem morou em uma casa geminada por quase toda a vida, é uma grande realização. Sinto-me como uma personagem de qualquer conto interessante escrito por qualquer autor relevante entre os anos 1950 e 1970. No Brasil ou alhures (adoro a palavra “alhures”). E toca “summer night – Miles Davis” ao fundo. Ainda é primavera, mas sinto-me qualquer coisa especial. Essa é a graça dos grandes vinhos. Como quando nos grandes amores, sentimo-nos qualquer coisa especial. 




Texto produzido por André Maia:

André Maia e Ayrton Gissoni
(Foto antiga de uma degustação beneficente organizada por André) 

André Maia é mestrando em Direito pela Universidade de Coimbra com bacharelado em Direito e Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Tem interesse em regulações de mercados, propriedade intelectual e regimes de bens com denominação de origem controlada. É apaixonado por vinhos há alguns anos, quando foi surpreendido com um vin de pays em um término de namoro. Mesmo numa caneca de plástico, desceu bem. Alguns meses depois, uma amiga o presenteou com um Moleskine. Resolveu dar ao famoso caderninho um honroso destino. Desde então, coleciona todos os rótulos interessantes que já bebeu